Austin Osman Spare, Vampir
É urgente voltar à consciência original da natureza, humana e para além dela, de forma a voltarmos a ser criaturas em completa comunhão com a vida. Assim, poderemos inverter o afastamento exponencial do ser humano para com a essência da vida.
Os conceitos éticos e estéticos que a humanidade se encarregou de fixar ao longo de milénios, estão hoje enraizados no consciente individual e coletivo, de tal forma que somos impedidos de regressar ao caldeirão original da existência. Esses conceitos não são mais do que invenções sociais provenientes da capacidade de pensar, invenções essas que se foram alterando ao longo dos séculos consoante as bitolas sociais que a sociedade julgou serem fundamentais. Muito contribuiu, por exemplo, a religiosidade monoteísta do bendito e luminoso para a adulteração do ser animalesco em ser social, religiosidade essa que abomina o mal e a escuridão. A redoma de proteção em relação àquilo que é demoníaco que a sociedade criou para o indivíduo, produz um efeito de ignorância, que leva, consequentemente, à incompreensão e escapatória em relação a tudo o que está para além desse círculo normativo do pensar. Esse pensar atribuiu ao ser humano autoridade quanto à evolução social e humanista em detrimento do sentir selvagem que caracteriza os seres vivos.
Alguns vivem hoje num meio termo entre o sentir pensando e o pensar sentindo, como alertava Fernando Pessoa, num ideal de sabedoria que compromete esses seres ao equilíbrio entre o ser original e o ser moldado pela sociedade. Contudo, para se atingir o pleno equilíbrio, é necessário que o ser humano experiencie e compreenda de forma absoluta os opostos, a racionalidade e a irracionalidade primária. Parece ser de senso comum que, para se compreender o bem ou o belo, se compreenda também o mal ou o feio. Ou seja, a luz e a escuridão na sua plenitude. Se há princípio claro no caminho tortuoso de descoberta da Via Sabbatica, é o de que a vida é uma confluência dos Todos, sem que haja julgamento de carácter social.
A contraparte da racionalidade social parece ainda estar presente em cada um de nós, por ação do sonho dormido, o inconsciente individual, atávico e hereditário. Mas, curiosamente, essa racionalidade social encarregou-se de colocar à margem da aceitação aquilo que o ser social interpreta como negativo. A um tipo muito específico de sonho, o ser social chamou-o de pesadelo, o que bem demonstra a rejeição do Todo Universal por parte desse ser “evoluído". Enquanto a aceitação e compreensão do Todo se der apenas ao nível inconsciente, no qual o Sonho Dormido é refúgio por excelência, a comunhão plena com a vida está destinada ao fracasso.
O feio não deve ser feio, assim como o belo não deve ser belo. Devem ser, apenas, independentes de qualquer julgamento. É muito curioso observar que, nos revivalismos pagãos, existe a necessidade de readaptar o pensamento e o discurso tendo em conta esses julgamentos sociais. Percebe-se, em qualquer grimório esotérico, a menção ao belo e ao feio com contrapartes relativas, ou até como contrapartes unas, precisamente para que o indivíduo dos dias de hoje consiga compreender esses conceitos. Até que retornemos à autenticidade da definição do Todo, parece ser necessário evidenciar essas diferenças.
Assim, para um regresso à plena comunhão com a vida é inevitável, em primeiro lugar, a aceitação do feio, do mal, da escuridão, e em segundo lugar parece ser essencial a transferência dessa compreensão do Todo para o Sonho Acordado. Curiosamente, as mulheres e homens sábios da gnose atávica, conhecidos na tradição ocidental como bruxas e bruxos, têm um certo apreço pela comunicação com os animais não racionais. São vários os testemunhos e as tradições de conventículos e seitas mágicas com recurso aos famuli, os espíritos familiares que guiam e acompanham o processo iniciático da Via Sabbatica, o que bem demonstra a pertinência de uma aproximação desse ser social despertado, a feiticeira, à natureza selvagem do animal original, transmutando-se assim em bruxa.